por Ricky Nobre

Os fãs brasileiros do cinema de terror assistiram nos últimos dias a cenas de pânico que culminaram num desfecho absolutamente aterrador. Não, não estou me referindo aos filmes barra pesada do Riofan, festival de cinema fantástico, de terror e ficção científica que aconteceu na Caixa Cultural . O que aconteceu fora das salas, no mundo real, foi bem pior.
Na última quarta-feira, dia 20, os organizadores do festival receberam um comunicado da Caixa Econômica Federal que dizia:
“Senhor Produtor, Informamos que, por decisão da Caixa Econômica Federal, o filme “A Serbian Film – Terror sem Limites” deverá ser retirado da programação da mostra RIOFAN, em cartaz na CAIXA Cultural RJ e patrocinada por essa Instituição.”
O filme em questão é um terror barra pesadíssima que fala de um ex- ator pornô sérvio que, para pagar suas dívidas e dar melhor situação à família, decide assinar contrato para mais um filme. Só depois descobre que se envolveu com perigosos produtores de
snuff movies. Durante o filme, todo o tipo de horrores se desenrolam, inclusive necrofilia (mais especificamente, sexo com um corpo recém decaptado), o estupro de um recém nascido e o de um menino pelo próprio pai, além de diversos outros horrores. O diretor Srdjan Spasojevic afirma ter realizado o filme como uma alegoria dos horrores que seus conterráneos não apenas sofreram na Sérvia, mas que foram obrigados a praticar.

A organização do Riofan divulgou um comunicado contestando a decisão, afirmando a supresa com o veto, e que duas semanas antes o mesmo filme foi exibido em outros dois festivais no Brasil. Afirmam ainda que:
"Não há, sob qualquer ótica possível, apologia à violência sexual contra mulheres ou menores de idade no filme. São atos absolutamente grotescos e tratados como tal por uma obra que se insere numa tradição de filmes “extremos” - um subgênero do cinema de horror que lida com questões repulsivas de forma radical, com o intuito de buscar o choque e a reflexão nos espectadores." E ainda: "O RioFan é radicalmente contra qualquer forma de censura - um mal que assolou nosso país durante décadas e contra o qual muitos deram o próprio sangue para extirpá-lo do Brasil. Somos a favor da total e irrestrita liberdade de expressão, pedra de toque de qualquer sociedade democrática."
Em comunicado, a Caixa afirmou que o veto ao filme "está em consonância com a linha de atuação da Caixa, atenta aos conteúdos apresentados em seus espaços" e que não representa censura.
Em virtude do veto, o Grupo Estação cedeu o Odeon para que fosse feita a exibição prevista na programação do festival, no último sábado. Na noite de sexta, porém, um oficial de justiça compareceu ao cine Odeon com um mandato de busca e apreenção e confiscou a cópia do filme. A juíza Katerine Jatahy Nygaard determinou a apreensão após o diretório regional do DEM (Democratas) entrar com uma ação contra a exibição do filme. O texto afirmava queo filme é “verdadeira apologia a crimes contra criança e um incentivo para práticas de pedofilia”.
É fácil ver nos fóruns de internet que, dentre todos que viram o filme, gostando ou odiando, até as pessoas que mais se enojaram concordam que o filme não defende nem incentiva a nada.
Por essa lógica, Assalto ao Banco Central incentivaria as pessoas a roubar bancos! Não seria possível ter nenhum filme retratando nenhum tipo de crime. Para que esse filme especificament pudesse ser proibido, seria necessário:
1- (questão objetiva) Definir se alguma criança efetivamente sofreu abusos durante as filmagens.
2 -(questão subjetiva) Definir se obra exalta, defende ou justifica os atos que retrata.
Em ambos os casos, seria imperativo que fosse realizado por uma comissão competente sem objetivos políticos, analizando cuidadosamente a obra, e não por uma canetada de uma juíza que nem viu o filme e só está reagindo ao pânico moral deflagrado pelo boca a boca dos últimos dias.
A Serbian Film foi exibido completo em diversos festivais mundo afora, mas foi vetado em vários outros também. Para ser lançado em Bluray na Inglaterra, teve que ser cortado em 4 minutos e meio. O Brasil seria o primeiro país do mundo além da Sérvia em que o filme seria exibido em circuito comercial sem cortes. O distribuidor Raffaele Petrini
confirma o lançamento nos cinemas brasileiros, apesar da cópia confiscada: "Vamos lançar! Já estou recebendo e-mails de várias salas de cinema. Ele será exibido até porque não tem nexo essa ação, pois o filme não tem pedofilia".
Esse é o primeiro caso de censura prévia no Brasil em 27 anos, desde Je vous Salue Marrie. Na época, a pressão da Igreja levou à proibição de um filme que, visto até na época, não tinha nada de mais. Agora, as acusações de incentivo à pedofila levam à apreensão de um filme e a um terrível precedente. Não é o caso de apreensão de material pedófilo, pornografia infantil ou de um snuff real. A decisão da juíza nada mais é que uma reação ao pânico moral que a simples pronúncia da palavra "pedofilia" gera nos dias de hoje, sem que seja necessária menor confirmação das acusações.

Particularmente, não vi Albergue, nenhum dos Jogos Mortais e evito horror e gore extremo. E não pretendo descobrir se A Serbian Film é uma séria e importante obra sobre as atrocidades cometidas pelo ser humano ou se é um lixo oportunista e mal realizado. Mas essa é a MINHA decisão. Censura (e censura NÃO É classificação etária, algo imprescindível) parte do princípio de que somos todos crianças, incapazes de decidirmos o que queremos ou não ver.
E eu que achava que estávamos na vanguarda mundial contra a censura...Detalhe: no horário em que o filme seria exibido, 90 pessoas protestaram contra a censura em frente ao Odeon. Mais gente do que cabe na salinha da Caixa Cultural onde ele seria inicialmente exibido. Nada como uma boa censura para aumentar o interesse das pessoas por filmes obscuros que antes ninguém sabia que existiam.