quinta-feira, 18 de junho de 2009

TROPA DE ELITE - As vítimas vivas da guerra

por Rick Nobre



Ver e pensar sobre Tropa de Elite não é uma tarefa mundana dentro da rotina cinematográfica comum, seja para um crítico, para um espectador ou para um analista de diversas especialidades relacionadas ao filme, seja ela sociologia, segurança pública, política, psicologia e outras tantas. Pra quem conseguiu se esquivar do milhão de cópias piratas que foram postas na rua três meses antes da estréia do filme, assisti-lo finalmente em seu lançamento comercial é um ato já contaminado por dezenas de opiniões dos mais diversos articulistas, capas de praticamente todas as revistas de informação do país, além da verdadeira histeria popular que se formou em torno do filme. Ao ganhar virtualmente todos os camelôs da Baixada Fluminense do Rio de Janeiro, além do centro da cidade, o povão que não tem 15 reais no bolso pra ir ao cinema pôde pagar 5 pratas e emprestar pra uns dez amigos, que emprestavam pra mais tantos, formando o público estimado em 11 milhões em todo o país antes mesmo da estréia oficial. A população que mais convive diariamente com a violência, do crime e da polícia, elegeu o Capitão Nascimento como seu herói, que, pegando geral, dá aos traficantes o que eles merecem. Em contrapartida, parte da imprensa quicou com a truculência policial desavergonhada e acusou o personagem aclamado pelo povo de “repugnante”, afirmando que o filme glorifica a violência policial, reduz a classe média a tolos estereótipos, formando uma obra ostensivamente reacionária. É, portanto, impossível tentar assistir Tropa a esta altura do campeonato com uma mente totalmente imparcial, como se as questões do filme já não fossem suficientemente incendiárias e controversas por si só. Mas o que fica numa análise mais atenta é que quem chama o Capitão Nascimento de herói nacional ou de repugnante, é porque não entendeu nada.

Os leitores podem lembrar da direita conservadora mala que encheu nosso já combalido e esgarçado saco, esbravejando contra filmes de grande sucesso como Cidade de Deus e Carandiru, acusando-os de santificarem os criminosos e fazerem apologia ao crime. Não deveria ser nenhuma surpresa (embora o seja) que a esquerda imbecil pós Lula venha nos azucrinar com a idéia de Tropa de Elite ser um filme reacionário que glorifica a brutalidade policial. Os filmes citados apresentam pontos de vista: uns de um lado, e este, mais recente, de outro. Não se espera, de forma alguma, que um cineasta simplesmente desdobre a visão de um determinado segmento diante dos nossos olhos sem que ele próprio exerça sua visão crítica. E José Padilha o faz e está tudo lá pra quem for ver o filme de olhos e cabeça abertos.

Baseado no livro de (supõe-se) ficção Elite da Tropa, escrito pelos ex-membros do BOPE André Batista e Rodrigo Pimentel e pelo antropólogo e ex-secretário de segurança pública de Rio de Janeiro Luís Eduardo Soares, Tropa de Elite é um mosaico de tragédias dentro da grande desgraça que é a instituição policial carioca. O papel do BOPE dentro deste sistema é explicado de forma simples e contundente pelo Capitão Nascimento: são acionados quando o frágil equilíbrio entre as armas dos traficantes e a corrupção da polícia se quebra. O público acompanha a vida do capitão e de dois aspirantes, Neto e Matias. O primeiro tentando ser substituído para poder se dedicar à esposa e o filho que vai nascer. Os demais começam a aprender, de forma dura, que o sistema policial não comporta suas visões ingênuas de jovens que ainda acreditam que é possível fazer a coisa certa. Todo o sistema de corrupção policial é dissecado no filme como numa autópsia: desde os PMs que vendem armas a traficantes, aos capitães que aceitam dinheiro dos bicheiros e traficantes, e os policiais que se viram como podem, recebendo de donos de bar por proteção extra, por não saberem como sustentar suas famílias com 500 reais, enquanto viaturas apodrecem nas oficinas. Desta forma, é construída diante de nós uma polícia impossível de funcionar, por absoluta falta de preparo, equipamento e estímulo, porque ninguém vai subir morro e tomar tiro por menos de dois salários mínimos. Desta forma, o BOPE se vê e se mostra como uma célula orgulhosa, brava e incorruptível, os últimos a terem condições de fazerem a coisa certa, da forma certa. O filme é narrado por seu personagem principal como um soldado numa guerra. E numa guerra luta-se de acordo.

A luta dos aspirantes em acomodar seus anseios dentro do sistema corrupto é tão agoniante quanto a tentativa desesperada do capitão Nascimento em sobreviver a ordens imbecis e à avassaladora superioridade numérica dos criminosos. Instabilidade emocional e crises de pânico o tornam ainda mais violento, o que preocupa seus colegas e sua esposa. Não é fácil gostar do personagem quando começa o inacreditável treinamento para novos integrantes do batalhão e, conforme ele vai chegando no limite, dá vontade de dar um tiro no cara quando ele se vira contra sua própria esposa. Da mesma forma, é impossível não se identificar com sua revolta contra os usuários de drogas, seu desprezo por policiais corruptos e sua culpa pela morte de um “vapor”. “Deve ser duro para uma mãe não poder enterrar o próprio filho”, uma das frases mais marcantes do filme e que surpreende os que vão traçando um perfil estereotipado do capitão, até culminar em sua inacreditável decisão em encontrar o corpo do menino.

A questão dos usuários mostrada no filme é um capítulo à parte. O retrato dos estudantes usuários de drogas que criticam o governo, a violência e a polícia, sem jamais raciocinarem sobre seu papel como consumidores dos produtos do tráfico é absolutamente pertinente e inédita na nossa dramaturgia. O próprio Capitão Nascimento, tão demonizado por parte da mídia, admite que não alivia, mas entende como um morador de favela se torna traficante, mas não um rapaz de posses que nasceu com tantas outras oportunidades. Pode, por vezes, parecer exagerado, como se fossem os estudantes todos imbecis, mas faz sentido a partir do momento que o filme é o ponto de vista da polícia. A maior falha do filme talvez seja não separar joio de trigo no que se refere às ONGs. Ao mostrar apenas uma, pode sugerir que são todas dominadas por políticos em campanha e por estudantes maconheiros, com o reforço do fato de que, pra colocar qualquer coisa na favela é necessário pedir permissão ao dono. Sendo várias dessas ONGs a única forma de assistência que chega a uma área onde o Estado se omite completamente, pedir permissão ao “chefe” pode ser encarado como um mal tão necessário quanto usar dinheiro de corrupção para consertar carros da polícia.

O Capitão teme morrer e deixar sua família desamparada. Mas não parece temer por sua própria alma, nem as de seus companheiros. De fato, esta é sua principal arma. A brutalidade do treinamento do BOPE, onde entram 100 e saem 5, serve como um curso de desumanização, de desvalorização da vida, muito próximo ao que passam os meninos que entram para o tráfico, onde têm que mostrar seu valor praticando os primeiros assassinatos. Numa guerra, luta-se de acordo. E sem remorso e sem pudor algum, ele usa, explora e alimenta a culpa e o ódio de Matias para que ele seja capaz de realizar os atos que o tornem digno de ser seu legítimo sucessor: o novo capitão do BOPE. O jovem idealista que “achava que fazia muito sentido estudar direito e ser policial” abraça a brutalidade e morre um pouco por dentro, sendo mais uma vítima da guerra que não tem fim. A simbologia gritantemente eloqüente da bandeira negra do BOPE cobrindo a Bandeira Nacional é, mesmo em meio às brutais cenas de tortura, talvez a mais chocante cena do filme.

Todo o humor que percorre Tropa de Elite, e o que o torna suportável de ser assistido para nossa sensibilidade, desaparece em seus 20 últimos minutos, deixando corações gelados ao fim da projeção. Profundamente perturbador e meticulosamente esclarecedor, Tropa de Elite é um lado da guerra ainda não explorado pelo cinema e que é muito mais rico do que parece, mesmo com suas pequenas falhas. Longe de glorificar a violência do BOPE, ele mostra como ela é inevitável dentro da realidade em que aqueles homens são inseridos e como ela arrasta, dia a dia, a guerra para cada vez mais distante de seu fim.

PIRATARIA E A FUNÇÃO SOCIAL DO CINEMA.

Fazer cinema no Brasil foi, em diversos momentos de sua história, um ato político, uma forma de resistência cultural. A herança cinemanovista, com seu enfoque social predominante, deu ao nosso cinema uma obrigação sociológica que boa parte dos cineastas abraçou de corpo e alma, enquanto outros aceitaram como ela era: uma obrigação. Depois da febre das pornochanchadas e da morte do cinema pós Collor, este enfoque voltou a ocupar um lugar em nossa cinematografia, mas não como antes. Afinal, o “cinema da retomada”, inaugurado em 1995 com Carlota Joaquina, pregava uma diversidade de temas e estilos rigorosamente inédita na cinematografia nacional. O enfoque social tornou-se apenas uma das possibilidades, mas tornou-se, veja só, discurso oficial. De acordo com a Lei de Incentivo à Cultura, de onde sai todo o dinheiro usado em cinema no Brasil, é prevista uma obrigatória “contrapartida social” que um filme deve ter para receber verba do governo. Há quem defenda, com muita propriedade, que o simples fato de fazer um filme no Brasil já é uma contrapartida social por si só.

Neste panorama, a idéia de “cinema de cunho social” tornou-se um estereotipo dentro de seu próprio meio, e motivo até de piada de quem acha que não está aqui para pagar 15 reais pra ver os problemas do país. Cidade de Deus inaugurou o gênero “pobreza para as massas”. Filmes dinâmicos, com muita ação e excelentes diálogos que falavam das mazelas sociais num outro tom. É natural que o conceito de “função social do cinema” se perca em todas essas traduções e trilhas cheias de curvas. É aí que Tropa de Elite surpreende, mesmo que acidentalmente e talvez ainda sem dar-se conta.

O fenômeno que se seguiu à popularização instantânea do filme assim que caiu nos camelôs é rigorosamente sem precedentes. Pessoas gritam espontaneamente nas ruas os diálogos marcantes do filme e assistem compulsivamente múltiplas vezes, numa obsessão teletubbie assustadora. Até sex shops já carregam produtos relacionados ao filme. A expressão “fenômeno cultural” não é de forma alguma um exagero neste caso.

O filme, com sua linguagem popular (em contrapartida à sua linguagem cinematográfica sofisticada), cativou os corações e mentes da população que ouve Patrulha da Cidade e foi criado a manchetes de jornais populares do calibre de “BOPE esculacha geral no Alemão”. O personagem alçado à condição de herói, assim o foi graças à percepção prévia do público de que o extermínio é a única arma na guerra contra o crime, emoldurado pela admiração ao capitão que é, aparentemente, o incorruptível dentro de um covil de corruptos. Ele faz o melhor que pode com os quase inexistentes recursos que recebe. É possível estimar que o diretor José Padilha jamais imaginou que o filme seria assistido de forma tão ostensiva e vasta pelas classes populares, ou não teria deixado boa parte de seus questionamentos ao nível sutil e refinado em que deixou. Mas, por outro lado, parte da “intelectualidade” quebrou a cara também ao ler o filme como reacionário, o que mostra que bagagem cultural pode não ser suficiente para ler as sutilezas de uma obra além dos preconceitos.

Quando a cópia pirata de Tropa de Elite caiu no mercado 4 meses antes de seu lançamento oficial (que acabou sendo adiantado em 1 mês e meio) houve grande discussão sobre se isso destruiria a carreira cinematográfica do filme ou se serviria de instrumento de marketing para alavancar sua popularidade. Não era pra ter acontecido, mas aconteceu. Um escroto sem mãe achou uma boa idéia piratear um filme brasileiro. Filme brasileiro, gente! É a mesma coisa que roubar de pobre! Mas o filme não foi apenas pirateado e visto por vias escusas: tornou-se uma mania nacional que as atuais novelas da Globo apenas sonham em ter novamente. Uma quantidade de gente e, acima de tudo, de um segmento social específico, foi exposta ao filme de forma que jamais seria se dependesse das bilheterias dos cinemas. Ao se mostrar compulsivamente obsessivo por Tropa de Elite e alçar o Capitão Nascimento ao status de herói nacional, o povo brasileiro fez o filme cumprir, de forma jamais sonhada por seus realizadores, sua FUNÇÃO SOCIAL. Ao realizar Tropa de Elite, José Padilha procurou chamar a atenção da classe média, da classe intelectual e dos setores públicos para como a guerra contra o tráfico se desenvolve do ponto de vista da polícia. Mas ao cair nas graças do povão, Tropa de Elite se mostra como um ponto de partida para questões ainda mais contundentes. E cabe àqueles capazes de se esquivar e sobreviver aos diversos petardos atirados ao filme a tarefa de analisar as questões da criminalidade e segurança pública sob uma nova luz: o que o povo está dizendo ao se mostrar obcecado por esta história que é parte tão indissociável do nosso dia a dia? O que significa a esmagadora aprovação popular pelo Capitão Nascimento?

Um povo que se formou sem a menor noção de como se exerce cidadania grita como pode (ou como sabe). Nem que seja rindo com os amigos repetindo os diálogos mais marcantes e assistindo o filme pela trigésima vez.

Um comentário:

Anônimo disse...

Ótima crítica. Até agora a mais pertinente que li a respeito de "Tropa de Elite".
O observador